sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

A grande mesa de Natal

A mesa de Natal foi farta e eclética. E eu nutri certa ansiedade, já que fiquei responsável por fazer um quentão de pinga, uma salada de batata com maionese e rabanada. Nos reunimos no apartamento dos vizinhos de baixo: Marie Catarine é suiça e o marido Ian, alemão. Eles têm uma filha de pouco mais de um ano, Tilda, que era a única criança presente. Os pais do Ian também vieram pro jantar. Assim como o irmão, que trouxe a namorada israelense, com mais dois rapazes judeus, estudantes de cinema em Potsdam. O casal francês, Michel e Laurence, que mora no primeiro andar, subiram com a mãe dela, Monique. A vizinha da frente, nascida na Turquia, juntou-se a nós também. Éramos 14 pessoas e 3 culturas religiosas diferentes comemorando o nascimento de Cristo. Não houve troca de presentes e pouca coisa lembrava as circunstâncias de um natal brasileiro, a começar pelo frio. Foi momento de comunhão gastronômica. É tradição alemã comer ganso no Natal, assim como se come peru no Brasil. Foi servido como prato principal, junto com chucrute caseiro de repolho roxo: um privilégio pra mim, pois até então só tinha comido o industrializado.



A conversa foi agradável, mas às vezes tangemos polêmicas. Eu não gosto de religião, mas não posso negar minha herança cristã. Sou partidária do estado laico e me posiciono criticamente em relação às posturas atuais de Israel. Dei esse exemplo aqui e quis saber a opinião deles sobre o tal muro. Polêmica instalada, claro. Um dos rapazes aprendeu árabe na escola primária e disse que muitos dos colegas almejavam se tornar espiões no futuro. A televisão faz propaganda ideológica entre os jovens, passando novelas em que personagens vão felizes para o alistamento militar, que é obrigatório em Israel. Contaram casos interessantes de adolescentes que se recusaram à servir o exército, criando verdadeiras performances na frente dos avaliadores, pra se safar da atividade. Na Alemanha há a opção do serviço civil e o filho do Michael, está em Tóquio por conta disso. No Brasil e em Israel não há opção civil. Na Alemanha e em Israel, ambos os sexos têm que servir. Ester, a namorada judia do irmão do Ian, o anfitrião alemão, trabalhou pro serviço secreto e hoje ri disso. No ano que vem ela vai com um grupo pra Argentina fazer um filme e me perguntou entusiasmada sobre Buenos Aires. Eu disse, acanhada que não conheço nenhum país da América Latina, e ela se chocou com isso: como pode eu já ter estado em Londres, Berlin, Paris, Amsterdã e nunca ter ido à Montevidéu, Lima, Caracas, Santiago, Buenos Aires? Será que a máxima de que o Brasil tem as costas voltadas para a AL procede? Penso que a gente acaba se desinteressando pelo que está mais próximo. E vice-versa. Eu nunca tinha preparado quentão e rabanada: achei as receitas na internet. A bebida brasileira fez sucesso como aperitivo e a rabanda se misturou com doces alemães e turcos. Me surpreendi quando Ester disse que minha salada de batata com maionese era idêntica a da mãe dela. Aí acabamos falando da pobreza da culinária europeia antes do contato com o continente americano. Como a batata, os povos europeus não conheciam o tomate e o milho, por exemplo, e o velho Hans, avô da pequena Tilda, não sabia disso.

A noite seguiu regada a vinho tinto e animada com música. Eu nunca tinha visto Marie Catarine tocando piano, apesar de já ter ouvido melodias pelos corredores do prédio. Depois rolou um pouco de violão e cantoria. Já era mais de meia noite aqui quando liguei pro Brasil. Natal é sinônimo de família, casa cheia e comida farta. Falei nostalgica com meus pais. Em Berlin, eu tinha casa cheia e comida farta. E ainda consegui encontrar uma ligação entre todos ali. Quando eu elogiei o doce delicioso feito com uvas passas, gomos de manderine, uma laranjinha alemã saborosa e grãos cozidos de cevada, a anfitriã disse que o doce tinha sido trazido pela vizinha turca, Pativa, que naquela hora já tinha ido embora. E ainda disse, que foi a cevada o principal alimento dos passageiros da Arca de Nóe. Daí eu encontrei um elo: essa mitologia do velho testamento, é ponto comum das 3 culturas religiosas presentes na minha noite de Natal. Mulçulmanos, judeus e cristãos têm como base religiosa as tradições abraâmicas e todas fazem leituras similares do enredo da arca em que Noé, o único homem justo na terra, foi escolhido junto com seu clã e pares de todos os animais, a se protegerem do dilúvio provocado por Deus. E todos se alimentaram de cevada. Por conta da perversidade da Humanidade, Deus decidiu destruir o mundo, mas poupou esse homem bom e justo da inundação, pedindo que ele construísse a tal arca. Para além da  carga mitológica, eu compartilhei, longe da minha família, um Natal eclético e multicultural. Se as pessoas fazem da religião suas diferenças, eu encontrei no doce de grãos de cevada a carga de humanidade que ligou todos ali. Mas na hora da despedida, além de boa noite, desejei a paz de Cristo...









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